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mALDIÇÃO DA Fome

Atualizado: 22 de set. de 2022

Por Henrique Araujo Nascimento, Luiz Attié e Tomás Novaes



Garoto da beira do Rio Parnaíba, Crispim volta à casa da mãe de barriga e mãos vazias após mais uma pescaria em que faltara o mais importante: os peixes. Mas o que encontra sobre a mesa lhe revolta – a refeição do dia seria um caldo de osso de boi. Frustrado e esfomeado, atinge a própria mãe, na cabeça, com a ossada. Ela morre, e a Crispim resta perambular pelo rio, castigado com o próprio crânio enorme, inchado.


Assim reza a lenda piauiense do Cabeça de Cuia, popularizada no final do século 19. Por trás do mito, a triste realidade: a fome já faz parte da cultura nacional e, assim como o folclore, perdura com o passar das décadas.


Dentro desse cenário, mais de 33 milhões de brasileiros passam fome no Brasil em 2022, segundo o relatório mais recente da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN), em contrapartida, a produção de grãos no país tem estimativa recorde com a safra atual: 271 milhões de toneladas, de acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).



Desde 2010, a Constituição Brasileira inclui, no seu artigo 6o, o direito à alimentação. Em 2014, um relatório global da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) declarou a saída do Brasil do Mapa da Fome – mas bastaram quatro anos para estarmos de volta. As recentes crises econômicas e políticas bastam para explicar a canja virando sopa de ossos?


Nos jornais, notícias de mercados vendendo restos de frios, pele de frango, feijão partido… produtos que antes eram descartados. Esses casos tornam-se comuns à medida que a insegurança alimentar aumenta: “O alargamento dos limites aceitáveis do que é ou não alimento é paralelo ao aumento da condição coletiva de fome”, argumenta Adriana Salay, que coordena o projeto Quebrada Alimentada, do restaurante Mocotó, que distribui alimentos para famílias em vulnerabilidade, e é doutoranda em História Social pela USP.


Em período de emergência, não faltou o básico só no prato. Além das unidades dos restaurantes Bom Prato – subsidiados, oferecem refeições a 1 real – e as escolas, com suas merendas, passarem mais de ano fechadas, durante a pandemia, os estoques de alimentos básicos ficaram todos praticamente zerados e a projeção se mantém atualmente.



"Está na Bíblia, o José do Egito: sete anos de vacas magras, sete anos de vacas gordas. É a primeira coisa que se fala no curso de política agrícola: estoques reguladores", comenta Walter Belik, economista e cofundador do Instituto Fome Zero.


Sergio de Zen, diretor-executivo da Conab, e Juliana Tângari, ex-presidente do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional do Município do Rio de Janeiro (Consea-Rio), esmiuçam o tema dos estoques e seus complementos no campo das políticas públicas:



Apesar de existirem caminhos estruturais, como o incentivo à agricultura familiar, citado por Juliana, as últimas decisões do Executivo envolvendo os aparatos de combate à fome têm tido impacto direto nos números de insegurança alimentar, especialmente em momento de crise – a extinção do Consea federal, a redução do orçamento do Programa de Aquisição de Alimentos, entre outros.



Para reverter essa situação, são necessários programas que levam em conta não apenas aspectos nutricionais, mas também culturais e ecológicos – é o “direito a escolher uma boa alimentação”, explica Denise Oliveira e Silva, antropóloga da nutrição e coordenadora do Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares.


A insegurança alimentar não é comer sopa de ossos, é só poder comer a sopa de ossos. O resultado dessa obrigatoriedade é a desnutrição. “Ela vai desligando as funções do corpo e, quando em crianças, traz danos irreversíveis na formação”, relembra Denise.


Em domicílios com moradores menores de 10 anos, a proporção de insegurança alimentar moderada ou grave foi acima de 40% em todos os estados da macrorregião Norte, chegando a 60% no Amapá, segundo o último suplemento da Rede PENSSAN. Quando – e se – chegarem à fase adulta, essas crianças carregarão para sempre as mazelas que a fome trouxe. Essa é a maldição que os aflige.


Colaboraram:

Adriana Salay Leme, Doutoranda em História Social pela Universidade de São Paulo. Mestre pelo programa de História Social da Universidade de São Paulo, Diretora de Comunicação do restaurante Mocotó e Coordenadora do programa Quebrada Alimentada

Denise de Oliveira e Silva, coordenadora do Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares

Juliana Tângari, ex-presidente do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional do Município do Rio de Janeiro e diretora da think-thank Comida do Amanhã

Melissa Luciano de Araújo, pesquisadora no Grupo de Estudos, Pesquisas e Práticas em Ambiente Alimentar e Saúde da UFMG

Sergio de Zen, Diretor-Executivo de Política Agrícola e Informação na Conab

Sabrina Stella Sampaio, nutricionista em postos de saúde em Cravinhos – SP

Walter Belik, economista e cofundador do Instituto Fome Zero


Arte: Adrielly Marcelino e Jorge Fofano.

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