Por Karina Tarasiuk
No seu aniversário de 38 anos, Ana tem uma crise existencial. É a idade que o seu pai tinha quando faleceu, 24 anos atrás. “E se acontecer o mesmo comigo? Sinto que não tenho nada para deixar. Eu serei esquecida? Não tenho filhos – nem desejo. Será que mesmo assim vou deixar algum legado quando não estiver mais aqui?”
"Ser pai foi a melhor coisa que poderia ter acontecido comigo”, ela lembra seu pai dizer, meses antes de sua morte. E, de fato, ser mãe ou pai é para muitas pessoas uma realização. Um enorme desafio, que exige responsabilidade, mas uma grande conquista.
Ela pensa em Cristina, sua amiga que, alguns anos após ser mãe, decidiu abandonar sua tão adorada carreira de professora de história do fundamental para virar advogada. “Eu amo a minha profissão. Mas ela não me dá retorno. Eu não sou valorizada. Não tenho segurança de que vou conseguir dar para a minha filha a liberdade de escolher ser quem ela quiser”, foi o que disse ao parar de dar aulas e iniciar a faculdade de direito. Para sua amiga, proporcionar uma boa qualidade de vida à filha seria seu maior legado.
“Mas eu vou deixar bens materiais para quem?”, pensa. Porém desconfia de que o legado vai além disso.
Natália, outra amiga sua, também não tem filhos. Seu legado se dá através do seu ativismo. Negra, lésbica e periférica, tem doutorado em psicologia pela melhor universidade do país. Abandonou a vida acadêmica para criar uma clínica popular voltada às populações marginalizadas. Consegue ajudar, e também inspirar, muita gente. Não foi apenas a primeira pessoa com diploma na família, mas também criou projetos para que pessoas com a mesma origem que a sua tenham as mesmas oportunidades de estudo.
“Também não é o meu caso. Estou longe de fazer um trabalho tão relevante para a sociedade”, Ana diz a si mesma, frustrada.
“Será que o simples fato de eu existir não é, por si só, um legado?”, indaga. O legado é um processo que está sempre em construção. Ele já existe no presente. Construir um legado é superar seus limites – para si mesma e para qualquer outra pessoa no futuro. Deixar um legado é manter uma parte sua viva, mesmo quando você não estiver mais aqui. É presentear o futuro com uma parte de si mesma.
Ela olha para a estante, que contém muitos dos livros preferidos do seu pai. Lembra-se de quando ele contava histórias para ela antes de dormir. E de quando ela mesma começou a ler os livros e conversar sobre eles com o pai. “Com certeza essa é a maior parte dele que está em mim. Esse amor pelas palavras.”
E relembra do seu antigo sonho de infância de ser uma escritora. uma escritora de ficção científica, o gênero preferido dela e do seu pai. Quando foi que ela abandonou esse sonho? Nunca se sentiu capaz. As pessoas ao seu redor nunca acreditaram nela. Ela mesma não acreditava. Todas as antigas histórias já imaginadas passam-se na sua cabeça. Talvez seja o momento de transformá-las em palavras.
Senta-se à escrivaninha para realizar seu maior sonho. Abre o notebook. Olha para o documento em branco e, sorrindo, digita: “Em 2387, os seres humanos...”
Colaboraram:
Gabriel Campos (31)
Geovana Pelegrin (22)
Gláucio Knapp (34)
Larissa Alexandre (25)
Larissa Ruiz (39)
Artigo científico usado como base:
“A influência do legado familiar na história pessoal: um estudo sobre o processo de individuação”, de Rosilene Santos da Silva e Ieda Tinoco Boechat
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