QUANDO HÁ AMOR PARA
RECOMEÇAR
Por Luciana Cardoso
Marley, um labrador magro e machucado, acabou caindo no rio em que bebia água. Por sorte, foi resgatado por uma pessoa que viu seu estado, mas não podia adotá-lo. Enquanto isso, a família Bernat procurava na internet um pet para se juntar a eles, quando viu o pedido de um lar para Marley. Talvez por ter conhecido a crueldade de perto, o cão se mostrava avesso a aproximações, até Gabrielly Bernat, ainda criança, ir em sua direção, acariciá-lo e delicadamente colocar a coleira. Saíram andando, a pequenos passos, e não se desgrudaram desde então. Essa união já dura 11 anos.
Na primeira visita ao pet shop, as suspeitas se confirmaram: além de ferimentos nos cotovelos, pulgas e carrapatos, o aspecto emocional de Marley era ainda mais preocupante. O comportamento do animal era um indício de que ele havia sofrido violência física. Chegando em seu novo lar, os olhinhos brilharam, mas os traumas dificultaram a adaptação à nova realidade.
A família precisou se adaptar ao novo membro, ficando atenta aos sinais que Marley emitia. Primeiro, foi preciso baixar o tom de voz e, com muita paciência e respeito por seu espaço, demonstrar que ali ele estava protegido. Foram inúmeras tentativas até que o gesto de levantar a mão em sua direção não viesse acompanhado de choros e rosnados. Era difícil entender que naquela casa vassoura se usa para varrer e não para machucar. Que as mãos servem para dar banho, fazer comida, encher de carinho e abraçar forte durante as trovoadas.
Habituado a fome, nos primeiros dias Marley dormia com a cabeça na tigela de ração com medo de que alguém fosse pegá-la. Hoje, ele sabe que comida e biscoitinhos não vão lhe faltar. O tempo ensinou que, ali, há parceria e afeto. Atualmente com 13 anos e 60 quilos, Marley se sente o rei da casa e gosta de dormir juntinho, andar no colo e fazer festa quando sua família chega do trabalho.
Foto: Acervo Pessoal
Hiperativa! mas ainda sim um anjo
Rayanne e Rafaela Almeida sentiam muita falta do som de patinhas andando pela casa. Perderam sua cachorra Nami para um câncer no estômago, em dezembro de 2015. A saudade levou ao resgate de uma cachorrinha de aproximadamente dois anos e meio, em janeiro de 2016. Mas foi um processo de conquista até que Yuki conseguisse um lar. Antes moradora das redondezas do Carrefour da Aricanduva, zona sudeste da cidade de São Paulo, a cachorra sempre rodeava a irmã de Rayanne enquanto ela esperava o ônibus. Até que um dia, ainda sensibilizada pela perda, Rafaela ligou para a irmã e contou sobre a cadela que sempre encontrava no ponto. Tiveram a ideia de adotá-la e, no mesmo dia, a atraíram com bolachas maisena.
Ao contrário da família de Marley, que estava procurando um cachorro para adotar, a primeira grande dificuldade foi a mãe de Rayanne. Ainda muito sensível pela perda de Nami e do esposo, a mulher não queria aceitar outro pet em casa. Mas Yuki ficou, conquistou seu espaço aos poucos e elegeu a matriarca como sua preferida.
Apesar da aceitação, o processo para integrar o animal à casa foi muito demorado e a dinâmica da família ficou completamente diferente da calmaria que era com Nami. A vida nas ruas ensinou Yuki a ser arisca, territorialista e, quando se sentia ameaçada, rosnava, chegando a morder. Patrícia Rodrigues, da ONG Natureza em Forma, explica que esse comportamento é comum, principalmente entre animais que passaram por situações de trauma e estresse.
Aos poucos, mãe e filhas tiveram que mostrar que, diferente da vida que tinha na rua, ali era um espaço de amor. Mas paciência, afeto e muita conversa foram a fórmula certeira para amenizar as desconfianças de Yuki, substituídas por horas no colo das donas. Hoje, quem vê seu pelo bem cuidado, não imagina que até mesmo as idas ao pet shop eram um transtorno, até a cachorrinha se sentisse familiarizada com uma das funcionárias. Essa antiga desconfiança se transformou em um afeto carregado de ciúmes, quando não lhe dão atenção, a manhosa faz xixi e cocô pela casa.
Tanto Yuki quanto Nami tiveram papéis fundamentais para as Almeida, ajudando-as principalmente a lidar com questões relacionadas à morte e afastamento das pessoas. Nami teve como missão preparar a família para a perda do pai de Rayanne, morto em 2012 devido a um câncer no estômago. A cachorra sempre latia e corria em busca de ajuda quando ele enfrentava crises hipovolemias, que o faziam sangrar excessivamente. Quando Nami morreu por problemas no mesmo órgão, a estrutura da família ficou ainda mais fragilizada.
Yuki, por sua vez, ajudou o trio a superar a perda da Pretinha — apelido carinhoso de Nami entre a família — , recebendo atenção redobrada das irmãs para qualquer sinal de problemas. Assim que perceberam que ela estava com os mesmos sintomas de quando Nami estava doente, correram para o veterinário, mas felizmente foi apenas um susto - um amontoado de areia no estômago da pet. Hoje, a cadela carrega uma medalha de São Francisco de Assis, conhecido por ser o protetor dos animais, para nunca ficar desprotegida.
Foto: Acervo Pessoal
Depois de Lit, nunca mais tive um dia só
Ao contrário de Gabrielly e Rayanne, Luciana Nunes nunca pensou em ter um pet. Numa de suas raras saídas de casa, a professora de Literatura foi ao bar comemorar o aniversário de uma amiga, na Região Metropolitana do Recife. Lá encontrou um poodle adulto, com cerca de 13 anos de idade, deixado no local por um homem que o resgatou mas não podia ficar com ele. Para essa raça, a expectativa de vida está entre 12 e 15 anos. Sensibilizada pela situação em que o animal já idoso se encontrava, a mulher decidiu alimentá-lo. O espetinho de carne e a água oferecidos eram gestos de carinho que ele há muito tempo não recebia. Saciado, o cão começou a segui-la, evitando perdê-la de vista.
E ao abrir a porta do carro para ir embora, Luciana foi surpreendida pelo poodle, que pulou para dentro do veículo. Os novos companheiros mal sabiam mas aquele gesto representava um recomeço para os dois, pouco depois da professora ser diagnosticada com síndrome do pânico e depressão. Na hora de dar nome ao seu novo companheiro, Luciana escolheu homenagear uma paixão antiga e objeto de seu trabalho, a literatura. “Lit” foi acompanhando as horas de leitura e música da professora, mas não sem antes enfrentar uma adaptação muito difícil, como nos casos de Marley e Yuki.
Sem experiência alguma com animais e enfrentando a depressão, Luciana cortou quase todo o cabelo por medo de ser picada pelos carrapatos espalhados pelo corpo de Lit. Em força-tarefa, ela contou com as amigas para tirar todos os carrapatos e aliviar o sofrimento de Lit. Doentes mas prontos para recomeçar, a rotina dos dois foi se ajustando e, na aceitação dos problemas, os dois foram encontrando a cura.
Aos poucos, o medo e sentimento de solidão foram substituídos pelo aprendizado das manias um do outro. Um dos hábitos de Lit é passear para fazer suas necessidades na rua. No começo, olhava pra Lu, dançava e mostrava a porta. Ela começou a sair mais por causa dele. No início, a professora achava muito estranho o fato do cão não latir, chegando a questionar o veterinário, que reforçou o espanto. Mas durante um passeio, o animal percebeu que Luciana estava tensa pela forma que ela puxava a coleira e, ao ver uma moto andando na direção dos dois, disparou um latido para protegê-la. Depois disso, nunca mais se calou.
Hoje, o companheiro de Luciana passa por uma situação difícil. Com idade estimada em 16 anos, Lit tem câncer no fígado com metástase. Medicado e em tratamento, os veterinários dizem que sua felicidade transborda, contrastando com o diagnóstico. Esse processo fez com que a professora se aproximasse ainda mais dele, fazendo todas as suas vontades. “Digo todos os dias que o amo muito e agradeço por ele ter entrado naquele carro há três anos. Faço poesia, boto nossas músicas, dou bolinho de carne, tudo pra ele não querer ir embora. Estamos confiantes que ele terá um tratamento eficaz e ficará ainda um bom tempo em nossa casa. O lar sem ele não é concebível”, diz, esperançosa.
Captação: Thiago Oliveira
Luciana Nunes declama poema que escreveu para "Lit", seu pet.
Adote um pet adulto
A ONG Natureza em Forma, no bairro paulistano da República, é um centro de acolhimento e adoção de animais em situação de risco. No espaço funcionam também um bazar e um pet shop com atendimento veterinário, e toda renda é voltada para manter o projeto. Além de cachorros, há gatos e até um galo para adoção. A procura de um lar para esses bichanos é o principal trabalho da organização, que recebe também animais de outros estados, como quatro cães que vieram de Petrópolis, no Rio de Janeiro, e os cachorros resgatados do desastre de Brumadinho, no começo do ano. A grande dificuldade está em encontrar um lar para os animais adultos.
Logo na entrada, há um banner com todos os benefícios de adotar um cão adulto. Entre eles, está a gratidão desses animais, geralmente submetidos a sofrimento. Além disso, a idade os tornam mais independentes, fazendo com que se adaptem ao novo ambiente e às pessoas com mais facilidade. Mesmo assim, Puff, Juqui Porpeto, Scooby, Antônio e Menina, alguns dos cães com mais de 5 anos de idade, esperam há anos por um lar. Por mais que as feiras de adoção se espalhem pela cidade, há uma grande diferença entre os números de filhotes e adultos adotados. Os pequenos, fofinhos e peludinhos são os mais procurados e os mais velhos seguem a fio em busca de acolhimento. Diferentemente dos filhotes, os adultos já têm personalidade formada e, assim, é possível conhecer o temperamento de cada um.
Todos os domingos, o Matilha Cultural, também no bairro da República, sede espaço para a ONG realizar a feira de adoção, e os cachorros ficam livres para socializar com os interessados. A procura por filhotes e limitação por tamanho do apartamento são as principais justificativas que os frequentadores usam para não adotarem cães adultos. Porpeto tem 7 anos e, apesar do tamanho, é muito calmo, o típico cachorro de sofá. Mesmo assim, há mais de dois anos espera uma família.
Confira abaixo GALERIA realizada na ONG Natureza em Forma e na feira Matilha
Fotos: Luciana Cardoso
Resgate de animais silvestres
Desde 2007, o biólogo Yuri Valença trabalha no Ibama com projetos de soltura, reabilitação e monitoramento de animais resgatados e apreendidos. Em 2014, a responsabilidade pela gestão da fauna passou também a ser dos órgãos estaduais de meio ambiente. Em Pernambuco, a Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH) e Ibama desenvolvem esse trabalho em conjunto.
Mestre em Biologia Animal, Valença trabalha no Centro de Triagem de Animais Silvestres (CETAS Tangará). Atualmente, o centro trabalha com um número de animais que varia entre 1.800 a 10 mil, sendo 90% de aves. Os outros 10% estão entre répteis e mamíferos.
“Nosso trabalho no CETAS é todo o processo de cuidado até a soltura. Primeiro se faz uma triagem para saber as condições do animal e então começa o processo de reabilitação, respeitando as particularidades de cada espécie”, explica. O processo de captura pode ser feito de várias formas e por outros órgãos e pessoas, desde resgate em acidentes a animais apreendidos por maus tratos ou tráfico. Mas é no CETAS que os biólogos e veterinários trabalham para dar condições ao recomeço desses animais.
Os animais reabilitados são liberados nas Áreas de Soltura e Monitoramento de Fauna (ASMF), onde são constantemente inspecionados. Já os animais mutilados ou domesticados não têm chances de sobreviver no habitat natural, por isso são enviados para áreas conservacionistas ou criadores mantenedores de fauna, que os acolhem. Na maioria dos casos, esses animais mutilados foram vítimas do amor egoísta do homem. Além das inúmeras aves com asas cortadas, Yuri lembra com tristeza da preguiça que teve suas unhas cortadas a um ponto que é impossível de crescerem de novo, impossibilitando a reabilitação desse animal na natureza.
“Nosso projeto chefe é o Papagaio da Caatinga, que devolve animais de cativeiros para a natureza. Ele serve como um projeto guarda-chuva, pois a partir dele é possível monitorar outros animais além do papagaio”. É com esse projeto que Yuri lembra de boas histórias de pessoas que o conheceram, se conscientizaram e passaram a defender a liberdade desses animais. “Qualquer ser tem uma função no mundo e não é simplesmente um bibelô ou animal de estimação para uma pessoa, principalmente os animais silvestres, que têm uma função determinada na natureza”.