Como a música toca nosso cérebro, estimulando emoções e resgatando lembranças
Por Beatriz Crivelari e Giovanna Stael
Arte: Marcelo Canquerino
O ambiente quente é iluminado apenas por luzes coloridas que piscam freneticamente. As peles se tocam enquanto a multidão dança. A música é um pop animado com ritmo dançante, trilha sonora de um filme de sucesso lançado em 2019. Que lembrança invade sua mente ao escutá-la? No caso de Amélia*, as memórias engatilhadas por essa canção estão longe de serem positivas.
Aos quinze anos, Amélia foi violentada sexualmente numa clínica. Não há outra alternativa quando as batidas começam a tocar: as lágrimas correm pelo rosto e ela é engolida pela memória da sala gelada onde o ritmo da música, ecoando da televisão ligada no filme, abafava qualquer som denunciativo.
Por que uma mesma música pode desencadear memórias e efeitos tão diferentes? O que acontece para uma música nos impactar tanto a ponto de sermos transportados para um momento exato em que aquela melodia tocava? Diferente de Amélia, a estudante Juliana relata ter uma experiência muito positiva com uma música em específico:
*O nome foi alterado para preservar a identidade da entrevistada
Acordes de uma lembrança
Música nada mais é do que a vibração de moléculas do ar. Apesar da simplicidade da definição, o efeito da combinação de letra e melodia pode gerar condicionamentos diferentes para cada um, como para Amélia e Juliana. “A música é vinculada intimamente às nossas estruturas relacionadas com as emoções, o que muda as respostas fisiológicas a elas”, é o que afirma o médico neurologista da Unifesp e músico, Mauro Muszkat. Apesar das inúmeras singularidades, ele explica que, partindo da questão biológica, a vibração de moléculas no ar chega aos ouvidos, mudando o movimento das células da parte mais profunda do ouvido e transmitindo-o pelo nervo auditivo. Daí então vai para as áreas do nosso tronco cerebral e ativa, primeiramente, partes primitivas do cérebro, o chamado cérebro reptiliano. Essa região está relacionada às nossas reações instintivas.
Depois disso, se organiza em áreas auditivas, localizadas na região temporal do cérebro, que fica na parte lateral da cabeça e está envolvida com a memória. É onde se localiza o hipocampo, relacionado ao registro das memórias e a seleção daquelas que vão se transferir como memórias persistentes — que ficarão armazenadas — ou evanescentes — que não ficarão totalmente registradas.
“A biologia da música é muito extensa. Vai desde áreas mais primitivas até as mais novas. Depois que o cérebro recebe o som, precisamos processá-lo para dar um significado. Para isso, recrutamos as áreas mais novas do desenvolvimento cerebral, nas regiões pré-frontais, localizadas na parte da frente do cérebro”, afirma Mauro. Ele explica que as áreas frontais estão relacionadas às nossas funções executivas e é aí que o cérebro decide o que fazer com a informação que recebeu: cantar, refletir sobre a melodia e até mesmo integrá-la com experiências anteriores.
As memórias conscientes ficam nas áreas mais novas no desenvolvimento evolutivo, enquanto as memórias inconscientes se localizam nas áreas mais primitivas, as quais muitas vezes não temos acesso. É por isso que algumas vezes ouvimos uma música tocar e percebemos que ela nos toca sem saber ao certo o porquê.
Todo esse mecanismo cerebral se junta e, quando ouvimos a música tempos depois, as nossas percepções visuais, espaciais e sinestésicas são desencadeadas. A partir disso, somos transportados a uma experiência anterior, que possui uma conotação emocional, sem percebermos, ligada àquela melodia.
Arte: Marcelo Canquerino
Entre o cantar e o recordar
A musicoterapia é uma profissão da área de saúde que usa elementos sonoros como tratamento complementar a diversas condições. A musicoterapeuta Michelle de Melo explica que a técnica ajuda a restabelecer funções cognitivas, dentre elas, a memória. O tratamento pode ser aplicado em casos de perda de memória decorrente de uma condição de saúde não progressiva, como o AVC, mas também contribui em casos de problemas progressivos, como as demências e o Alzheimer, retardando o efeito da doença. Esse processo "curativo" é chamado de plasticidade neural. “A música faz com que novas conexões entre os neurônios sejam restabelecidas, utilizando conjuntos de estruturas cerebrais que são paralelas com outras funções que não são musicais”, explica Michelle.
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