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Quando a vida se vai, as marcas permanecem

Por Amanda Capuano, Crisley Santana e Gabriel Araujo


Arte: Beatriz Cristina


Cemitérios: um parque de lembranças

Você já acordou decidido a passear pelo cemitério? Quem já foi a Paris, provavelmente, viu-se em meio às lápides do Père-Lachaise, morada final de figuras ilustres e um dos locais mais visitados da cidade. Não é preciso, no entanto, atravessar o oceano para que os túmulos contem histórias. Cemitérios, como o da Consolação, em São Paulo, e o São João Batista, no Rio de Janeiro, são verdadeiros museus a céu aberto, mas até os mais modestos abrigam memórias. O assunto é tão vasto que, em 2004, a historiadora Maria Elizia Borges se uniu a outros pesquisadores do tema para fundar a ABEC, Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais. Ela explica que os locais abrigam lembranças individuais que cercam a relação familiar de todos ali enterrados, mas também carregam uma memória coletiva através de personalidades que fazem parte do imaginário local. Além disso, as necrópoles também são locais de registro histórico. Em um rápido passeio pelo Cemitério da Consolação, pode-se ver estátuas de estilo neoclássico, barroco, gótico, dentre outros movimentos artísticos que marcaram época. No âmbito individual, as fotografias nas lápides materializam a imagem dos falecidos como seus entes queridos querem que sejam lembrados. “Através das fotos, você traça uma genealogia familiar. É o registro de uma linhagem, mas também uma forma de rememorar os mortos como eram em vida”, conta Maria Elizia. Mas os cemitérios ainda são vistos por muitos como locais sombrios. Para quebrar esse estigma, surgiu o Projeto Memória e Vida. Lúcia Salles, que comandou a superintendência de serviços funerários de São Paulo entre 2014 e 2016, conta que o processo funéreo não se limita ao enterro, e deve incluir o luto e a construção saudável da memória dos mortos. A partir disso, sua gestão promoveu concertos em datas simbólicas, como Finados e Dia das Mães, rodas de luto, passeios guiados e atividades educacionais que resgatam histórias antes esquecidas nos cemitérios. Fora da gestão desde a eleição de João Dória, ela lamenta que o projeto tenha sido abandonado e defende que a humanização do sistema funerário auxilia as famílias a lidar com a perda. A visitação dos túmulos não é uma celebração da morte, mas da lembrança em sua essência: “a memória é o que temos de mais vivo e o cemitério é um parque cheio delas”.

Obituário: Vida tecida diante da morte

Em poucos caracteres, o obituário sempre discorreu sobre a vida de pessoas, famosas ou anônimas, no pós-morte. Considerado gênero por possuir funções sociais específicas, ele se tornou uma forma de lembrança, homenagem e retrato, trazendo aos vivos um modo de transcender à existência por meio da memória dos que se foram. Suas raízes estão nos epitáfios e elegias, maneiras anteriores de homenagem aos mortos, mas a aparição coincide com o nascimento da imprensa: nos primeiros jornais, no século 17, já havia resquícios do que o gênero se tornaria. Foi no século 20, porém, que ele obteve grande repercussão, com os chamados “monumentos aos mortos”, textos escritos em homenagem aos que faleceram na Segunda Guerra Mundial. Aos poucos, ele ganhou espaço nos veículos mais importantes do mundo. “Jornais como o New York Times, sempre tiveram colunas dedicadas aos obituários”, afirma a professora Mônica Martinez, da Universidade de Sorocaba. No Brasil, o obituário também despontou ao lado da imprensa, segundo Martinez, “retratando pessoas que seriam a classe média". Publicações de grande expressão – como a Folha de S.Paulo desde 2007– e jornais locais também passaram a utilizá-lo. Com o tempo, o obituário adquiriu jeitos de ser. Por vezes mostrou-se positivo, mas também negativo, trágico, irônico, satírico. Foi acusado de retratar somente quem obteve capitais simbólicos de maior valor, mas de acordo com Martinez, apenas “se mostrou um reflexo dos principais leitores da publicação”. Solidificou-se como informe universal de memória, e por sinal, segue vivo até hoje. "Acho que ele (obituário) é luminoso, destaca o que há de mais brilhante na vida das pessoas, mesmo as mais desconhecidas ao longo da vida", acrescenta Leão Serva, diretor de Jornalismo da TV Cultura e organizador de Um dia, uma vida, livro que reúne uma seleção de obituários da Folha entre 2007 e 2014.


Arte: Beatriz Cristina

Uma forma de respeito

O jornalista Vander Luiz, proprietário de um portal, é um dos que trabalham para garantir a memória via obituários. Sempre que os escreve, ele tenta ir além dos aspectos básicos, como datas e causa da morte, e procura os impactos na memória coletiva. “Eu entendo que quando a gente coloca uma nota de falecimento, o primeiro ponto é o respeito pela pessoa, pela trajetória”. A trajetória foi considerada, por exemplo, no obituário de Bruno Lima Penido, roteirista da TV Globo, publicado pela Folha de S.Paulo em 22 de março. Quem conta é a jornalista Cíntia Cardoso, amiga de Bruno. Ela foi entrevistada pelo jornal para a escrita do obituário, que abordou passagens como a primeira palavra dita por Bruno: borboleta. “Acho que isso já deu uma indicação do que seria a personalidade dele, a sensibilidade, o olhar especial que ele tinha para as coisas”. Ela e Bruno trabalharam no veículo, onde se conheceram e formaram laços. Conceder uma entrevista para o obituário foi uma maneira de Cíntia homenageá-lo e aprender a lidar com a própria dor. “A morte do Bruno me deixou muito chocada... Então dar esse depoimento foi uma forma de elaborar esse luto, e tornar visível o luto da perda de um amigo”.


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