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Parto é

trabalho

Por Carolina Unzelte e Victória Martins

Da origem da vida, a primeira dor: o trabalho de fazer nascer é sinônimo de dificuldade, tortura. Dar à luz não ilumina tanto assim

No princípio do parto, há o verbo. O verbo punir. “E à mulher [Deus] disse: Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição (gravidez); com dor darás à luz filhos”. É isso que está escrito em um dos livros mais importantes do mundo ocidental, sagrado por muitos. Em letras divinas, a mulher foi castigada pelo prazer de comer do fruto proibido — do pecado, como é sua transa, seu gozo, seu prazer. Disse adeus ao jardim do Éden.

 

Mas parir é preciso. Na figura da parteira, mulheres compartilhavam o momento do nascimento, a sabedoria geracional dizia o que fazer. Elas aprendem observando outras elas, outros nenês. Dão chás e toalhas quentes para aliviar aquela de quem é a vez de dar à luz, sentem o bebê com o toque, trocam com olhares o sentimento da dor que a futura mãe tem.

 

À portas fechadas, os gritos de dor. De tesoura na mão, acabam com o cordão umbilical e o processo. Quando a placenta demora a sair, oram. Só mulheres mesmo poderiam dar isso. O que importa pra quem está do lado de fora do quarto é a procriação, a continuidade do nome. Se a parideira não mais vivia, como tanto aconteceu, era detalhe comum.

 

Quando vêm as universidades, vem o saber dentro das salas, o saber dito pelos professores e doutores. Não há espaço para as mulheres que ajudavam a nascer a partir do que se sabe pelas mães, avós, tias e pelo dom. E não há espaço para mulheres no conhecimento confinado em faculdades.

 

São médicos homens que fazem nascer. É para ser fácil para eles. O nascer muda. Se morre menos agora nos hospitais, é verdade, que bom. Fórceps, lembra instrumento de tortura medieval, mais um pegador de salada do que algo para se inserir corpo adentro. Cesárea para quando se nasce mais complicado. Mas uma coisa permanece latente.

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PODCAST - Esse gemido é de dor ou de prazer?
Por Carolina Unzelte e Rafael Battaglia Popp
GEMIDOS - dor ou prazer?
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De primeira, padecer sem paraíso

Horas de contrações, cólicas fortes te comprimem dos pés à cabeça. Dez minutos, dor, quinze segundos. Cinco minutos, dor, trinta segundos. Alguém querendo viver de dentro de você. Pressão de menos em menos. Bolsa estourada. Círculo de fogo e músculo da pepeca estirando abrindo esgarçando comprimido para ajudar a dilatar. Dura para sempre até você dar um pouco da sua luz.

 

Neste processo, há quem lembre do parto normal com grande repulsa, de horas que somam em mais de um dia de suor para transmitir a uma criatura o legado da nossa miséria e glória. Tem aquelas que tremem ao pensarem na cesárea ensanguentada, pontos que pulsam quando se anda, quando se senta, quando se vai ao banheiro. No denominador comum, a dor e a melhor experiência de suas vidas, é o que elas dizem, é o que dizem para elas.

 

Num mundo ideal, se não há impeditivo de saúde da gestante ou do feto, a mãe escolhe, a partir de muita conversa com o médico, acompanhamento adequado e informações sobre as opções, como quer dar à luz. Num mundo ideal. No mundo real, grávidas não têm estrutura mínima para se fazer o que se faz em qualquer lugar, lei da vida: parir.

 

Quando se carrega um ataque cardíaco no peito e uma barriga com dois gêmeos, parir naturalmente não é tão lei da vida assim. Quando se tem um filho de 3 quilos e 400 gramas, e um mioma, tumor de outros 3, cesárea é a única alternativa. Com bebê sentado dentro do útero, para quem já teve a cirurgia que faz nascer, para quem tem HIV ou herpes genital, é o mesmo destino: a cirurgia de sete camadas de tecido.

 

Mas não é porque há casos específicos em que se indica a cesárea que todos as outras mulheres parem normal. Você pode ficar 25 horas com contrações, vagina aberta em 10 centímetros e o bebê resolve virar. E você sobe pra faca. Há mulheres que tiveram uma cesárea que quase que foi normal e esperavam mais da dor, mas não negam a força dela. 52% das mulheres do país parem assim, a partir de procedimento cirúrgico, marcado ou não, diz a pesquisa Nascer no Brasil, de 2014.

 

Do lado da dor inevitável de se espicaçar por outro ser, há analgésico, há massagem, há banho quente e, o mais importante, há apoio emocional. Além disso, tem gente que não sente nada. Só o escorregar do filho por entre as pernas. Há quem faça alongamento do lado da cama do hospital depois de uma cesárea. A dor é uma experiência humana, e, como todas as que entram nesse pacote, vem carregada de individualidade, pelo que foi vivido e pelo que ainda se vai viver.

Por Carolina Unzelte, Rafael Battaglia Popp e Victória Martins
A dor que viola

Da episio, deu à luz. Mas não sem antes enfiarem um fórceps pelo corte, logo ali no períneo, entre o ânus e a vagina, e puxarem a bebê. Não sem antes pressionarem-lhe o ventre com força, para incentivar e acelerar o parto natural. Não sem antes gritarem-lhe que deixasse de ser mole, afinal, se outras mães conseguiram, ela também conseguiria. E sim, muito antes de informarem da incisão ou sequer darem-lhe uma anestesia. Da dor, deu à luz.

 

Até se imagina que pode doer. Dilata, força, dói. Corta, costura, dói. Não há muita surpresa quando te preparam toda a vida para o momento de fazer nascer alguém. Se espera pela dor assim como pelo instante mágico em que ela se vai: tudo vale a pena e você se torna mãe. Espera-se pela dor, até que ela vem do nada, sem avisar. E fica.

 

Se espera pela dor. Mas não pelo abuso. Não pela episiotomia, o tal do corte no períneo, pela cesárea sem indicação ou pela manobra de Kristeller, aquela pressão no útero que acelera o fazer nascer. Não se esperam os impedimentos ao acompanhante, à movimentação, aos alimentos, aos analgésicos ou à escolha da posição. Não se esperam os gritos, os xingamentos, a discriminação, muito menos a negação, a omissão.

 

Não se espera a violência obstétrica. Não se espera tornar-se estatística, ser mais uma das umas - uma em cada quatro mulheres que já passa pelos maus tratos na gestação, parto ou pós-parto no Brasil, segundo dados da Fundação Perseu Abramo, de 2010. Mas ela vem.

 

Vem pelas mãos de um sistema de saúde que aprendeu, desde sempre, a dominar o corpo alheio, em especial o feminino. Que se criou de colocar o saber médico antes de qualquer escolha ou sofrimento que a mulher possa ter. Que buscou a rapidez, a higiene e o controle e os priorizou diante do protagonismo da parturiente - não à toa, só 5% dos partos no Brasil acontecem sem intervenções médicas, de maneira completamente natural, como diz a pesquisa Nascer no Brasil, de 2014.

 

Vem ferindo direitos e deixando marcas vivas, permanentes, doídas, no corpo e na alma de quem pare. Vem, mesmo quando já se tenta, há muito, fazer com que termine - há quem se informe e faça planos e tente de tudo para fugir à dor; há quem peça por mudanças e clame por uma assistência obstétrica humanizada, que trate das gestantes com respeito à quem são e ao que desejam; há quem crie regras, políticas e diretrizes; há quem divulgue onde pode, desnaturalize onde dá, lutando com as armas que têm; há quem receba denúncias; há até quem faça leis.

 

Parto é trabalho. Machuca, rasga, marca, muda. Dói. Mas essa dor, que dói um pouco diferente, que se faz violência na hora da luz, já vai se fazendo notar. E, de pouco em pouco, deixará espaço para que a mulher escolha seus próprios caminhos e faça, do parto, um dia que seja só dela.

Ilustrações: Aline Melo e Mariana Rudzinski
Colaboraram
Documentos

Angélica Antônia Bernardes Amaral, um parto normal depois de 12 horas de contrações e um pique

Tata Ferrari, uma cesárea por mioma

Luana Macedo, teve gêmeos por cesárea, pois tinha tido um ataque cardíaco

Helena Lopes da Silva, dois partos normais

Karina Conde Luz, um cesárea, depois de 25 horas de contração à espera de um parto normal

Glaucia Pereira, lembra do parto normal como difícil e da cesárea como fácil

Priscilla Moia, uma cesárea contra a sua vontade e espera um bebê que quer parir naturalmente

Maressa Silva, doula

Carolina Scalissi, ginecologista e obstetra

Natália Nascimento, vítima de violência obstétrica

Ilka Teodoro, diretora jurídica da Artemis, ONG especializada na erradicação da violência contra a mulher, em especial da violência obstétrica

Ana Lúcia Keneuke, advogada, militante dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e membra da DeFEMde - Rede Feminista de Juristas e do Colegiado da ReHuNa - Rede de Humanização do Parto e Nascimento

 

Dossiê “Parirás com Dor” (Rede Parto do Princípio) e pesquisas Nascer no Brasil: Inquérito Nacional Sobre Parto e Nascimento (Fiocruz) e Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Públicos e Privados (Fundação Perseu Abramo); “A História do parto: do domicílio ao hospital; das parteiras ao médico, de sujeito a objeto”,de Cláudia Tomasi Vendrúscolo e Cristina Saling Kruel; “Fertilidade e infertilidade na Bíblia: Suspeitas a partir da teologia feminista”, de Elaine Gleci Neuenfeldt; “A Maternidade na História e a História dos Cuidados Maternos”, de Solange Maria Sobottka Rolim de Moura e Maria de Fátima Araújo.

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