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Cicatrizes na alma

Por Anderson Lima e David Ferrari


Arte por Amanda Mazzei e Luana Benedito

São 12 horas, o sol está no meio do céu. É a hora do almoço. Tudo o que se tem no armário é feijão e farinha de milho. A refeição é a mesma da segunda, terça, quarta, quinta e sexta-feira. Hoje é sábado. Nos pensamentos mais íntimos, quer arroz, feijoada, uma proteína — talvez carne vermelha —, salada, suco… Mas logo a imaginação desaparece. O mundo real chega, dá um soco na barriga e diz: “será que hoje vai ter comida para o jantar?”.


O fantasma da fome é apenas um dos diferentes tipos de traumas que marcam a vida das pessoas. Algumas sofrem pela perda de um ente querido ou de um amor. Outras, por não terem sido aprovadas em um concurso. Internamente, há marcas de cada um dos momentos em que ficamos à flor da pele.


Maria Gaspar, hoje com 47 anos, era criança quando vivia com a assombração da fome. Filha de pequenos produtores rurais, raramente tinha fartura em sua mesa. Na maioria dos dias, sua refeição era feijão e farinha. Ir à mercearia para comprar pão ou bolacha era um evento quase que histórico.


“Parecia que éramos condenados à fome”. Maria se perguntava por que isso acontecia. Ela conta que, até hoje, não superou aquele fantasma. Sempre que vê pessoas pedindo dinheiro para comprar comida, as marcas voltam à tona.


O trauma é, nas palavras da psicóloga Adriana Siqueira, um desagradável, abrupto e marcante acontecimento. É a interpretação de um evento sofrível e ameaçador, que, mesmo após sua ocorrência, é lembrado com intensidade.

Trata-se de uma circunstância mais comum do que se pensa. Em estudo de 1998, liderado por Naomi Breslau, ex-pesquisadora em epidemiologia psiquiátrica na Universidade Estadual de Michigan, estimou que 60% a 90% da população vivenciará um evento traumático.


A duração e a intensidade do trauma esbarram na subjetividade de cada indivíduo e os motivos são diversos: desde a validação da dor sentida, até a perpetuação de uma busca por justiça. Fatores de exposição e adaptação também explicam como algumas pessoas estão mais preparadas para lidar com eventos traumáticos do que outras, sendo mais resilientes e pacientes.


Para superar o trauma, Adriana diz que as pessoas devem ressignificá-lo, aproveitando a inerente capacidade de adaptação de cada um. Essas marcas trazem lembranças de por onde a pessoa esteve, mas não devem ditar para onde ir. A ideia é buscar maneiras mais fáceis e prazerosas, aproveitar-se do fator "capacidade" intrínseco a todos.


Mais do que cicatrizes, traumas podem ser tratados como feridas, pois estas ainda estão abertas e em processo de cura, podendo ficar expostas pelo resto da vida. Às vezes superados, às vezes esquecidos, estes sentimentos enraizados fazem com que filmes passem pela mente do indivíduo, como aconteceu com Maria, que esperava por um futuro melhor. O tão aguardado amanhã demorou para chegar, mas chegou. Hoje, ela faz questão de ir à padaria logo cedo, toda manhã.


 

Colaboraram:

Adriana Siqueira, psicóloga clínica

Amanda Félix, 19 anos

Cleberson Rocha, 37 anos

Maria Gaspar, 47 anos



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